Relatório da CCJ aprofunda problemas do Código

08 de September de 2011

Relatório para o Código Florestal na CCJ consolida problemas do projeto aprovado na Câmara – aumenta instabilidade jurídica e estimulará mais desmatamentos Por André Lima, Raul do Valle e Kenzo Juca* O relatório elaborado pelo Senador Luiz Henrique (PMDB/SC) analisando a legalidade e constitucionalidade do PLC 30/2011, que visa modificar o Código Florestal, não só não resolve, como aprofunda pontos problemáticos do projeto aprovado na Câmara dos Deputados. Consolida a anistia e a diminuição na proteção ambiental. Apoiado em jurisprudência superada ou votos derrotados no STF, ele reforça inconstitucionalidades, amplia a insegurança jurídica e incentiva novos desmatamentos. Destacamos a seguir os principais problemas de constitucionalidade e legalidade do substitutivo que deve ser analisado pelos senadores integrantes da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) nas próximas semanas. Embora o projeto tenha muitos outros problemas, nos ateremos a aspectos meramente jurídicos. O substitutivo é inconstitucional por tratar desigualmente os cidadãos, beneficiando quem descumpriu a lei O substitutivo beneficia aqueles que praticaram o desmatamento ilegal, dispensando a recuperação de áreas e o pagamento de multas, sem trazer qualquer benefício concreto para quem cumpriu a lei. Quem desmatou até 2008, mesmo ilegalmente, pode continuar usando a área, enquanto que os que cumpriram a lei e mantiveram (ou restauraram) suas áreas de vegetação nativa continuarão proibidos de usa-las. No caso de dois proprietários com imóveis do mesmo tamanho, vizinhos, situados na beira do mesmo rio, o que desmatou antes de 2008 – data definida sem qualquer fundamentação técnica ou jurídica – poderá usar mais área para fins produtivos (recuperar apenas 15 metros de mata ciliar – art.35; manter pastagens em topos de morro e encostas – art.10 e 12; ser dispensado de recuperar a reserva legal se tiver até 4 módulos fiscais – art. 13, §7º) do que aquele que conservou (tem que manter preservados 30 metros de mata ciliar, encostas e a reserva legal). Este, em troca, não ganhará qualquer benefício concreto. É um prêmio à ilegalidade, e uma penalidade a quem cumpriu a lei. Fere frontalmente os princípios constitucionais da razoabilidade, proporcionalidade e motivação dos atos legais e administrativos. O substitutivo afronta a constituição porque suprime o direito da sociedade de participar na gestão ambiental Toda a legislação ambiental brasileira foi construída com base no princípio, exposto nos arts. 1º (Todo poder emana do povo que o exercerá diretamente ou por seus representantes) e 225 de nossa Constituição Federal, de que a sociedade civil tem o direito de tomar parte nos processos de decisão que dizem respeito à qualidade ambiental. Pela lei atual, tanto o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), como os Conselhos Estaduais Ambientais - órgãos que contam com a participação de representantes de trabalhadores, empresários e ambientalistas, dentre outros membros da sociedade – têm competência para definir os casos excepcionais em que se é permitido desmatar áreas de preservação permanente (APPs) a título de interesse social, utilidade pública ou baixo impacto. É uma forma de se exercer o legítimo controle social com transparência uma vez que se trata de definir exceções justificadas à proteção de um bem comum a todos os cidadãos do País. Pelo relatório apresentado, essa definição ocorrerá pelo “chefe do Poder Executivo federal ou estadual” (art.3o, incisos XVI, XVII e XVIII), ou seja, por decretos que não precisam passar por processos de consultas ou escrutínio público. Isso ocorre em vários outros dispositivos ao longo do texto (art.15, §2o; art.19, §§ 1o e 3o; art.24; art.26; art.27). Em resumo, o legislativo retirar da sociedade o direito de participar da discussão dessas regras, que lhes afetam diretamente pois como dissemos trata-se de definir exceções ou regras que afetam um bem considerado patrimônio de todos os cidadãos do País. O substitutivo não garante segurança jurídica porque abre espaço para todos os Estados estipularem, sem parâmetro geral, as exceções à aplicação lei Um dos argumentos utilizados para modificar a lei atual é que ela “não traz segurança jurídica”, por supostamente ter excessivas regulamentações. O relatório, no entanto, aprofunda esse problema. O relatório delega aos chefes do poder executivo dos 27 estados (art.3o, XVI, XVII e XVIII) a edição de um número ilimitado de decretos específicos para declarar, sem qualquer limite ou critério geral, atividades pontuais como de utilidade pública, interesse social ou de baixo impacto, o que serve para consolidar desmatamentos ilegais e autorizar inclusive novos desmatamentos (art. 8º) em áreas de preservação permanente. Hoje isso é definido pelo CONAMA – no qual todos os Estados têm participação e voto – em nível nacional, após meses de discussões técnicas e abertas à sociedade. Evita-se dessa forma que para um Estado a criação de camarões, ou a construção de hotéis em restinga, por exemplo, seja considerada de interesse social e em outro não. Pelo substitutivo, poderá haver 27 definições diferentes sobre o que é utilidade pública, interesse social e baixo impacto para fins de desmatamento. Mais que isso, a cada mês ou ano pode surgir, sem qualquer debate público ou discussão técnica e científica um novo decreto do governador acrescentando (ou porque não retirando) determinado tipo de empreendimento ou atividade como de utilidade pública ou interesse social indefinidamente. O art.8o diz que cada Estado definirá as atividades, para além das “agrossilvipastoris” já garantidas no próprio texto, que podem ou não ser mantidas (“consolidadas”) em APPs ilegalmente desmatadas. Cada estado poderá ter uma regra diferente, com o risco – grande – de nivelamento por baixo. O substitutivo não garante segurança jurídica porque mantém várias incongruências, lacunas e contradições Há várias contradições e lacunas no projeto que foram mantidas no relatório, piorando a legislação atual e aumentando a possibilidade de interpretações divergentes sobre o sentido e orientação da lei. Um exemplo diz respeito à recuperação de matas ciliares, áreas de fundamental importância para a produção de água. O art.8o diz que todos os desmatamentos – legais ou ilegais – ocorridos até julho de 2008 em APPs (beiras de rio, por exemplo) devem ser legalizados, ou seja, não precisam ser recuperados. O art.35 diz, no entanto, que quando se tratar de rios com até 10 metros de largura é necessária a recomposição de uma faixa de pelo menos 15 metros (metade do previsto na legislação atual), ou seja, nessa faixa não é possível a “consolidação” de atividades. Essa regra, além de diminuir a proteção à maior parte dos rios do país (mais de 50% da malha hídrica do Brasil de acordo com a SBPC), não diz o que deve ser feito no caso de rios maiores. Deve-se recuperar 15 metros, como nos rios menores? Ou nesses casos não precisa recuperar nada? Não há resposta, pois a preocupação claramente não foi a de garantir a conservação. Outro exemplo é o art.39, que cria abertura para discussões judiciais infindáveis sobre a necessidade de recuperação da RL. A pretexto de deixar claro que aqueles que respeitaram a área de reserva legal de acordo com as regras vigentes à época estão regulares, ou seja, não precisam recuperar áreas caso ela tenha sido aumentada posteriormente (como ocorreu em áreas de floresta na Amazônia, em 1996), o projeto diz simplesmente que não será necessário nenhuma recuperação, e permite que a comprovação da legalidade da ocupação sejam com “descrição de fatos históricos de ocupação da região, registros de comercialização, dados agropecuários da atividade”. Ou seja, com simples declarações o proprietário poderá se ver livre da RL, sem ter que comprovar com autorizações emitidas, fotos aéreas ou imagens de satélite que a área efetivamente havia sido legalmente desmatada 1ª época como determinava a legislação vigente. Mas a contradição maior é que, embora o projeto reconheça a importância das APPs, qualificando-as como “área protegida com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (art.3o, inciso II), permite que todas as áreas que foram desmatadas até 2008 – a grande maioria – permaneçam assim, sem qualquer tipo de proteção. Há outras incongruências e contradições que não foram resolvidas e que inundarão o judiciário trazendo poucas garantias objetivas seja para os produtores rurais, seja para o meio ambiente. O substitutivo incentiva novos desmatamentos afrouxando as regras vigentes para regularização de novos desmatamentos O texto traz inúmeros dispositivos que, em lugar de restringir novos desmatamentos, criam facilidades para quem descumprir a “nova” lei, desmontando o sistema de controle e afrouxando as regras atualmente existentes. É uma contradição em si: uma lei que incentiva o descumprimento de suas próprias regras. Além de permitir uma vasta gama de hipóteses de consolidação de desmatamentos ilegais, a proposta permite que um desmatamento irregular feito hoje (ou no futuro) em área de reserva legal possa ser compensado em outra região (fora do Estado) ou recuperado em 20 anos com o uso de espécies exóticas em até 50% da área. Hoje a lei permite compensação apenas para desmatamentos irregulares ocorridos até 1998. Ao não restringir essas hipóteses de regularização apenas a desmatamentos passados, a lei incentivará que proprietários desmatem irregularmente áreas onde o valor da terra é mais alto e as compensem em outros lugares (a proposta permite que possa ser em outros Estados) onde o preço da terra é muito inferior. Além disso, essa reserva legal (desmatada) poderá ser recuperada apenas pela metade (art.38, §3o), pois a outra metade poderá ser composta por espécies exóticas (eucalipto, por exemplo), que hoje têm alto valor econômico, mas praticamente nenhum valor ambiental. É, em resumo, um prêmio à ilegalidade. O texto mantém a brecha, no artigo 27, para que municípios possam autorizar desmatamento, o que levaria a uma total falta de controle da política florestal brasileira. Basta que o município crie uma Área de Preservação Ambiental – APA, que não demanda desapropriação e não implica necessariamente em restrições objetivas aos proprietários, para que todos os desmatamentos autorizados em seu interior sejam de competência municipal. Ao se aplicar essa regra no arco do desmatamento, onde a pressão dos proprietários de terras sobre as prefeituras é maior, teremos seguramente uma reversão na tendência de queda do desmatamento no país, com o agravante de que boa parte das derrubadas contará com uma autorização supostamente legal. Por fim, ao dizer que o fiscal ambiental poderá – e não deverá – embargar atividades realizadas em novas áreas de desmatamento ilegal (art.58), transformando o que hoje é uma obrigação do poder público em ato discricionário do técnico de campo. O substitutivo contraria decreto hoje vigente, e permite que essas áreas possam ser regularmente usadas por até 20 anos. O proprietário voltará a lucrar sobre área ilegalmente ocupada. Diante do que foi até aqui exposto, exame ainda preliminar dado o pouco tempo que tivemos para esta análise, conclui-se que o relatório apresentado pelo Senador Luiz Henrique na Comissão de Constituição e Justiça do Senado em lugar de corrigir os equívocos e reduzir a insegurança jurídica trazida pelo texto aprovado na Câmara dos Deputados consolida e busca legitimar os problemas contidos no texto do Deputado Aldo Rebelo. *Análise preliminar do Relatório e Substitutivo apresentado em 31/08/2011 pelo Senador Luiz Henrique (PMDB/SC) na Comissão de Constituição e Justiça do Senado elaborada para o “Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável” e para a “Campanha SOS Florestas”. Subscrevem essa análise André Lima, advogado, OAB-DF 17.878, Mestre em Política e Gestão Ambiental pela Universidade de Brasília, Membro do Conselho Nacional de Meio Ambiente pelo Instituto O Direito por um Planeta Verde e Consultor em Direito e Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e da Fundação SOS Mata Atlântica (alima1271@gmail.com), Raul do Valle, advogado, OAB-SP 164.490, mestre em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo, Coordenador Adjunto do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental (raul@socioambiental.org)e Kenzo Juca, Sociólogo e Consultor Legislativo do WWF-Brasil (codigoflorestal@wwf.org.br).

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