Do que as Unidades de Conservação da Mata Atlântica precisam

07 de October de 2025

As UCs permanecem como o instrumento mais eficaz para conservar a biodiversidade, manter serviços ecossistêmicos essenciais e reconectar a sociedade com a natureza


Diego Igawa Martinez para o Nexo


Dedicar espaços territoriais à proteção do patrimônio natural não é uma ideia nova, mas tem se mostrado cada vez mais urgente. Os primeiros registros formais de áreas protegidas datam do século 18, como a Main Ridge Forest Reserve, em Tobago, poupada da devastação dos colonizadores pela percepção de que aquela floresta influenciava o regime de chuvas da ilha, essencial para a agricultura.

Mesmo antes disso, muitas outras áreas provavelmente já operavam como territórios protegidos, baseadas em acordos tradicionais para conservar recursos naturais ou locais sagrados. Apenas no final do século 19 surgiram os modelos de áreas protegidas que inspiraram os sistemas que reconhecemos hoje, como os Parques Nacionais.

Àquela altura, a Mata Atlântica já havia sido extensivamente degradada no Brasil pelos ciclos econômicos do ouro, do café e outras atividades. Hoje, apenas cerca de 24% do território do bioma conta com cobertura florestal, enquanto mais de 60% da área está ocupada por atividades agropecuárias.

Os mais de 130 milhões de hectares da Mata Atlântica — incluindo zonas de transição com outros biomas — abrigam mais de 70% da população do país, produzem mais da metade dos alimentos consumidos pelos brasileiros e fornecem cerca de 60% de toda a água para abastecimento urbano no Brasil. Mesmo assim, seus ecossistemas naturais nem sempre são devidamente valorizados. Em um contexto de emergência climática e colapso da biodiversidade, as áreas protegidas ganham uma relevância central.

As primeiras Unidades de Conservação (UCs) do Brasil nasceram na Mata Atlântica, como a Floresta Nacional de Lorena e os Parques Nacionais de Itatiaia, da Serra dos Órgãos e de Foz do Iguaçu, todos criados antes da década de 1940. Em julho de 2025, a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) completará 25 anos, tendo consolidado avanços importantes na organização das categorias de UCs e em seus processos de gestão. Ainda assim, apenas uma pequena fração da Mata Atlântica está formalmente protegida por UCs.

O Marco Global da Biodiversidade, acordo internacional ratificado pelo Brasil e por mais de 190 países, estabelece a meta de conservar pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas do planeta até 2030. Mas, para avançar, é necessário saber com precisão onde estamos, e isso nem sempre é uma tarefa simples.

Um estudo recente da Fundação SOS Mata Atlântica, visando contribuir para o estabelecimento de uma linha de base mais precisa, fez um mapeamento detalhado das UCs constantes do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação e inseridas no território de aplicação da Lei da Mata Atlântica. Também foi feito o cruzamento desses dados com mapas de uso e cobertura da terra. O estudo revelou que apenas 12,8 milhões de hectares (9,8% da área do bioma segundo a Lei) estão protegidos por UCs. Esse número desconta cerca de 1,2 milhão de hectares de sobreposições entre diferentes categorias de UCs, que muitas vezes mascaram a real extensão das áreas protegidas.

Grande parte dessas áreas protegidas está sobre a Floresta Ombrófila Densa, especialmente nas regiões úmidas da Serra do Mar. Outras formações, como as Florestas de Araucárias, continuam severamente sub-representadas, com apenas 670 mil hectares sob proteção. A falta de representatividade ecológica é um desafio que ainda está longe de ser superado.

Outro dado relevante é que apenas 3% da área total de UCs correspondem a Unidades do grupo de Proteção Integral, como as Reservas Biológicas e Estações Ecológicas, que são as categorias mais restritivas e focadas na preservação dos atributos naturais. Por outro lado, mais de 69% da área total de UCs são Áreas de Proteção Ambiental (APAs), que permitem maior flexibilidade de uso. Isso reforça a necessidade de avaliar não apenas a quantidade, mas a qualidade da proteção.

Segundo o estudo, apenas 59% da área das UCs mantém vegetação nativa. O restante está ocupado por usos como pastagens e mosaicos agropecuários, com quase 2 milhões de hectares de pasto dentro de áreas protegidas. É sabido que a restauração florestal em áreas degradadas é uma prioridade para a Mata Atlântica, e o estudo reforça que isso deve ocorrer inclusive dentro das próprias UCs.

Talvez o dado mais preocupante seja que mais de 80% dos remanescentes florestais da Mata Atlântica estão fora dos limites das UCs. Isso revela o quanto ainda falta para que o sistema de áreas protegidas cumpra seu papel na conservação do bioma. A criação de novas UCs, especialmente em áreas prioritárias para a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, é essencial.

Para isso, uma ação relevante é ampliar os incentivos à criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), uma vez que cerca de 80% das terras da Mata Atlântica são privadas. Contudo, essa estratégia não substitui a necessidade de expandir a rede pública de UCs. Apenas na esfera federal tramitam dezenas de propostas de criação de novas UCs, algumas já se estendem por décadas e correm o risco de se tornarem inviáveis caso não sejam retomadas de forma enérgica pelo poder público e por mobilizações da sociedade.

Por fim, para avançarmos no nosso compromisso de aumento das áreas protegidas no bioma não é admissível nenhum retrocesso na proteção ambiental. Diversos Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional e em Assembleias Legislativas, ao invés de fortalecerem as UCs, propõem exatamente o contrário: flexibilizar regras, impedir a criação de novas UCs, fatiar ou até extinguir áreas já existentes, inclusive áreas emblemáticas como os Parques Nacionais da Tijuca e o de Itatiaia. 

Os desafios são enormes: falta de orçamento, escassez de pessoal técnico, obstáculos políticos e econômicos. Ainda assim, as UCs permanecem como o instrumento mais eficaz para conservar a biodiversidade, manter serviços ecossistêmicos essenciais e reconectar a sociedade com a natureza.

As Unidades de Conservação guardam as nossas referências, são as grandes bibliotecas vivas da Mata Atlântica. É verdade que algumas estantes precisam ser restauradas, outras ampliadas, mas o conhecimento e os valores que elas guardam são insubstituíveis. Mesmo frente às dificuldades, as UCs constituem-se na melhor invenção humana para garantir um futuro minimamente viável para a natureza e para nós mesmos.

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