Entrevista do mês: Gustavo Martinelli

20 de January de 2022

Por Mônica C. Ribeiro Ouvir Gustavo Martinelli contar sobre as expedições botânicas realizadas por ele em todos os biomas brasileiros, em 48 anos de atuação no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, traz uma sede de explorar a diversidade biológica da flora brasileira e nos faz pensar o quanto o país ainda precisa conhecer. A sede, no caso de Gustavo, ainda não terminou. Ao contrário. Recentemente aposentado em 2020, ele continua a realizar expedições por conta própria. Só em 2021 foram duas, e ele já prepara mais algumas para 2022, dentro de um projeto pessoal chamado Inventários em Áreas Prioritárias para Conservação. Ele identifica regiões prestes a desaparecer, onde ocorrem pressões antrópicas, e documenta a flora existente. As amostras são doadas ao Jardim Botânico. É um registro que acho fundamental para o país, para que não apenas se reconheça o que existe, mas que se reconheça no futuro o que foi perdido sabendo o que realmente existia ali. E também estão nesse processo áreas que são gaps de informação, que nunca foram inventariadas e que ninguém sabe o que tem ali. Doutor pela Universidade St. Andrews, foi pesquisador do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e coordenador do Centro Nacional de Conservação da Flora na mesma instituição. Na década de 1990, Gustavo coordenou o projeto Bromélias da Mata Atlântica, que mapeou todos os remanescentes do bioma e levou dois anos coletando amostras para duas finalidades: levantamento e documentação de espécies para o herbário e para uma coleção viva, que facilitaria a reprodução e reintrodução de espécies em lugares em que o bioma fosse destruído. Conselheiro da Fundação SOS Mata Atlântica há 20 anos, participou da realização do Atlas da Mata Atlântica e é um dos autores do Livro Vermelho da Flora do Brasil, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti na categoria ciências naturais, em 2014. Fruto de uma demanda do governo federal para atualização da lista de espécies de flora ameaçadas, o levantamento trazia na época 2.113 espécies, ante à lista anterior, que documentava pouco mais de 400. Hoje, segundo ele, essa lista, se atualizada, deve chegar a mais de cinco mil.Por achar que nesse país, com essa riqueza de flora que a gente tem e a rapidez com que a destruição avança, é um pouco um luxo se dedicar a apenas uma família, preferi trabalhar com a flora de um modo geral, particularmente com espécies ameaçadas.Nessa entrevista concedida à SOS Mata Atlântica, o biólogo e botânico reflete sobre a sua trajetória, a experiência com o paisagista Burle Marx no início de sua carreira, as inúmeras expedições realizadas ao longo de quase cinco décadas de trabalho no Jardim Botânico e a experiência com povos originários nos processos de inventariamento da flora, incluindo a publicação do livro 'Una Isi Kayawa - Livro da cura do povo Huni Kuin', que registra as plantas utilizadas pelos Huni Kuin de forma medicinal. O livro foi elaborado a pedido dos indígenas, que sentiam perder sua cultura com o envelhecimento dos pajés e o pouco interesse das novas gerações pelos conhecimentos da floresta. Foi um enorme aprendizado. E no final das contas, minha conclusão como cientista é que, de tudo que eles têm de memória de plantas usadas na medicina, boa parte não são mais as plantas da floresta. Isso mostra que eles já perderam uma parte do conhecimento das plantas da floresta primária e passaram a usar espécies já domesticadas, que são mais plantas dos quintais, lavouras e capoeiras.   [caption id="attachment_1090645075" align="alignnone" width="640"] Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
  Como você descobriu que queria ser botânico? Quando veio o ‘estalo’ que o levou a seguir por esse caminho? Sempre acho que às vezes o universo conspira para as coisas acontecerem. Eu sou um carioca, urbano, nascido e criado no Leblon. Mas meu pai sempre teve um sitiozinho em Araras [Petrópolis, RJ], onde estou agora - embora não exatamente na mesma casa -, em plena Mata Atlântica. Estava na fase de estudante, de decidir o que ia fazer no vestibular, e meu pai tinha um amigo que era do mundo do Jardim Botânico, da academia, uma pessoa muito especial. E ele comentou com esse amigo que buscava um lugar onde eu pudesse fazer estágio, e que eu gostava de natureza. E veio o estágio no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em janeiro de 1973. Ali eu descobri um mundo com o qual eu me identifiquei. O mundo das plantas. O universo conspirou para que eu me encantasse, e assim passei 48 anos em uma instituição bastante singular, que existe desde o Império. O Jardim Botânico tem 213 anos de existência. É uma instituição que circula em vários mundos: o mundo da conservação, porque esse é o papel fundamental dos jardins botânicos no mundo, a conservação das plantas; o mundo científico, porque é também uma instituição de pesquisa e o mundo da educação, pela capacidade de disseminar informações aos milhares de visitantes. É como se a gente vivesse em duas carreiras, a científica, de ciência e tecnologia, e a da conservação, no seu sentido mais amplo. E tudo começou graças aos grandes mestres que tive no Jardim Botânico.   Você viajou com expedições botânicas por todos os biomas no país nesses 48 anos de atuação no Jardim Botânico. Quantas foram nesse tempo todo? Olha, eu não sei te contar. Porque foram muitas. Tive uma fase inicial em que eu acompanhava meus mestres, e isso foi um grande aprendizado. Porque é muito diferente o que você aprende nos livros e o que aprende andando ao lado de um professor, na floresta, treinando seu olhar para enxergar as diferenças e entender tudo aquilo. Mas eu realmente não tenho essa conta. Recentemente foi feita uma homenagem a mim, no ano passado, no Congresso Nacional de Botânica. Que me pegou de surpresa e me deixou bem emocionado. O Jardim Botânico tem uma das maiores coleções científicas de plantas do Brasil, que é uma referência nacional. E o seu acervo completou 130 anos em 2020. E a minha surpresa, porque eu realmente nunca me preocupei em sistematizar esses dados, é que na história desse herbário fui considerado o maior coletor de amostras de todo o país. Essas expedições tiveram várias fases. Em uma delas, trabalhei em um projeto grande, fruto de um acordo de cooperação internacional entre o National Science Foundation dos EUA e o CNPQ, que era o projeto Flora da Amazônia. Lá nos anos 1980 o país estava naquele processo de abertura de estradas na Amazônia, aquela coisa de a Amazônia é nossa, uma febre de loucura política. No mundo científico, a gente conhecia pouco da Amazônia. Ela não era explorada, apesar de já existirem por lá instituições antigas e grandes trabalhando na região. A dimensão daquele bioma ainda trazia muitas áreas sem explorar. E eu participei de boas expedições, algumas longas, de 3 a 4 meses inventariando espécies nunca antes identificadas. Dos anos 1990 em diante, comecei a visitar outros lugares em outros biomas e a selecionar quais daquelas áreas que já tinha visitado anteriormente seria interessante complementar com informações. E vou fazer um parêntesis aqui. Temos um desenvolvimento científico e tecnológico muito grande, uma grande parte do mundo da botânica hoje já trabalha no nível molecular, produzindo informações preciosas sobre os processos evolutivos e ecológicos. Mas o Brasil é um país que ainda precisa do elementar, da chamada pesquisa básica, que é saber o que é que existe de fato, registrar as amostras e as informações sobre onde ocorrem. Estamos falando de biomas que são do tamanho de países na Europa. Temos ainda essa quase dicotomia, avanços em algumas áreas e pouco avanço naquela que é fundamental, a pesquisa preliminar, o levantamento e a identificação do que existe e do que está se perdendo.  

"(...) é que na história desse herbário [do Jardim Botânico do Rio de Janeiro] fui considerado o maior coletor de amostras de todo o país."

  Como foi a seleção dessas áreas que você voltou a visitar? Comecei a visitar áreas que eu já tinha ido há um tempo e percebi que algumas delas simplesmente haviam desaparecido. Lugares que tinha visitado há cinco, seis anos fazendo levantamentos, pesquisando uma dada região, uma área amostral importante, ecossistemas quase endêmicos de certas regiões. Por exemplo, na Mata Atlântica me lembro muito de áreas que são conhecidas como matas do sal. São florestas em cima de uma areia branca, um tipo muito peculiar. As espécies que ocorrem ali são muito específicas, endêmicas daquela região. Era um lugar onde encontrei várias espécies novas, uma certa região serrana do Espírito Santo. Cinco, seis anos depois eu volto nessas regiões e elas não existem mais. Só existem pequenas áreas na forma de fragmentos isolados deste tipo de floresta. Muitas das áreas de outros ecossistemas hoje são pastos, ou um condomínio gigantesco, uma plantação, ou mesmo áreas desmatadas e abandonadas, e isso chamou muito a minha atenção. E então eu mudei um pouco, saí do padrão estritamente acadêmico, cujas métricas são baseadas em quantos artigos você publica nas revistas científicas. Como se mede a atuação de um pesquisador da área acadêmica? Vendo quantos artigos ele publicou, qual é o seu fator de impacto, quantos alunos formou em mestrado e doutorado, enfim. Em um dado momento, pensei: se quero salvar alguma coisa, tenho que ultrapassar as fronteiras desse mundo, porque se eu escrever um artigo, que vai ser publicado nas grandes revistas importantes e famosas, qual o tempo para que um artigo impacte na prática em proteger um lugar, uma região, as espécies? E isso mudou meu rumo. Eu passei a me dedicar muito mais a ações práticas e emergenciais, a me preocupar muito mais com fazer ações de pesquisa básica, de registrar e documentar as espécies que caracterizem a importância de ações concretas voltadas para a conservação.    [caption id="attachment_1090645076" align="alignnone" width="640"] Acervo pessoal de Gustavo Martinelli