Apoie nossas
causas
Se mantenha informado de nossas ações
20 de January de 2022
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
O Livro Vermelho vai fazer 10 anos daqui a pouco, e estamos em uma década muito cruel de desmatamento, queimadas...o quanto de espécies até mesmo desconhecidas não perdemos nesse processo...
Aquele livro tem 2.113 espécies ameaçadas. A missão que eu recebi do Ministério do Meio Ambiente quando elaborei o livro foi atualizar a lista brasileira de espécies ameaçadas. Que estava desatualizada há 16 anos. Quando eu recebi essa missão, busquei o que Brasil já tinha produzido sobre espécies ameaçadas. Juntei tudo que encontrei e chegamos a 2.113 espécies. A lista anterior tinha pouco mais de 400.
Qualquer pessoa pode produzir uma lista de espécies, mas elas precisam ser reconhecidas oficialmente como espécies ameaçadas, para poder ter a força da lei para proteção. Eu queria que essas espécies fossem reconhecidas por lei. O livro foi uma forma de pressionar o próprio ministério em que eu trabalhava a reconhecer isso. Quando ganhamos o Prêmio Jabuti, foi a gota d’água. Pela divulgação, pelo reconhecimento, aquelas 2113 espécies foram reconhecidas oficialmente como ameaçadas de extinção.
De lá para cá, eu diria que já temos quase 5 mil espécies avaliadas, além daquelas, e a maioria ameaçada. Esse reconhecimento é fundamental quando um governo, de fato, quer ter uma política para conservação de espécies. Nesses últimos quatro anos, nessa última gestão do país, o assunto de conservação de espécies andou muito pouco, e nem vai andar. Mas independentemente de essas espécies serem reconhecidas governamentalmente, o fato de serem conhecidas socialmente já é um passo.
A sociedade precisa conhecer. No meu lugar, nessa região aqui de Araras, temos dez espécies ameaçadas de extinção. O que eu posso fazer? O que a comunidade local pode fazer para salvar essas espécies, mesmo que não estejam protegidas por lei?
O Centro Nacional de Conservação da Flora está dentro de uma escala federal, uma escala de governo, e hoje, neste governo, provavelmente vai ter dificuldade para concretizar a ampliação dessa lista.
[caption id="attachment_1090645074" align="alignnone" width="640"]
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
Em suas expedições você deve ter tido contato com muitas comunidades indígenas, povos tradicionais. Como o saber coletivo bate para você nos processos de inventariamento de espécies?
É um mundo maravilhoso de conhecimento e sabedoria. Isso ajudou também o meu crescimento e minha visão de mundo, porque são duas fontes de aprendizado - o mundo acadêmico e o mundo real da floresta. Eu aprendi logo no início uma coisa importante. Sem alguém do lugar você não avança. No tipo de trabalho que a gente faz, o mais importante é ter conhecimento sobre quem são as pessoas daquela região, que conhecem e podem guiar você.
Em 1988 ou 1989, fiz uma expedição ao Pico da Neblina. E eu ainda era aquele cara impulsivo, querendo conhecer tudo. Tínhamos seis guias Yanomami, só um falava português. E aí seguimos, seis dias a pé, subindo, muito extenuante e caótico. Tanto que a expedição não chegou ao pico da neblina. Eu passei os três primeiros dias atrás desse Yanomami, que falava português, perguntando sem parar sobre o que eram as coisas, e ele respondia pouco, ficava em silêncio. E percebi que no quarto dia ele passou a me evitar. E sentado na minha rede me dei conta de que eu não parava de perguntar, de falar, queria saber tudo, estava tão animado e queria ver tudo o que ele conhecia. Então em outro dia, já nos preparando para dormir, em um chão cheio de flores, eu peguei uma flor grande, me sentei do lado dele e perguntei: Davi, você sabia que isso aqui é um órgão masculino, e isso aqui o feminino, e quando junta tudo fazem o fruto? Ele só me olhava, não falava nada. No dia seguinte, na hora do café, ele pegou uma flor daquelas e ficou olhando.
Em 2018 fiz outra expedição ao Pico da Neblina. E a base era na mesma aldeia, mas eram outros guias. Perguntei para um deles sobre o Davi, e ele me disse que ele estava bem velhinho, mas ainda estava lá, e que me levaria até ele na volta. Voltamos da expedição, ele me levou até um velhinho, eu não o reconheci. Mas o velhinho olhou para mim e falou assim: professor das flores! A troca que é uma coisa importante. A minha experiência com as comunidades é de aprendizado total. Não quero só aprender deles, mas o que eu puder também quero orientar e ensinar. Passaram-se mais de 20 anos e o Davi se lembrou, não esqueceu aquele aprendizado.
Então é muito bacana ver a simplicidade, o conhecimento, a experiência, um olhar diferente do seu, uma nova visão. Tem lugares que às vezes eu volto porque quero estar com aquele guia de novo. Que tem troca, ajuda, construção em vez de competição.
[caption id="attachment_1090645079" align="alignnone" width="640"]
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli
Tem alguma expedição, nesses 48 anos, que mexeu mais com você?
Ah sim. Tem algumas. Cada lugar traz uma experiência, como se fosse a experiência de visitar um país diferente. Cada região tem uma experiência única, é difícil até de comparar, de mensurar qual seria a mais marcante. Mas acho que o mais impactante para mim é a experiência com os povos originários das florestas do Rio Jordão, no Acre. Tem um livro muito bacana, o Una Isi Kayawa - Livro da cura do povo Huni Kuin, que foi uma experiência incrível. Quando eu estava fazendo o Livro Vermelho, uma das espécies que tinha uma importância econômica muito grande - porque as espécies que estão na lista de ameaçadas, em boa parte, são espécies de valor econômico - era o mogno. O mogno é uma das espécies de madeira mais caras do Brasil. E a ciência tem pouca informação sobre o que resta de mogno. Onde é que tem mogno? Quem sabe isso são os madeireiros, não os cientistas. Porque o cientista está no seu laboratório, ele acessa uma base de dados disponíveis, sabe onde ocorre a espécie, mas não em que quantidade, quantos indivíduos em um ano, quantos estão em idade produtiva, se está havendo crescimento, enfim. Poucos sabem sobre esses dados básicos, que para obter é preciso estar no campo, suando, com mosquitos, malária etc. E aí fiz uma expedição no Acre, em uma região em que haveria madeireiros do Peru entrando no Brasil para tirar mogno. E para isso eles expulsavam os indígenas das aldeias. Fomos lá, conhecemos essa comunidade indígena, explicamos, eram várias aldeias, várias lideranças que nos ajudaram, e eles entenderam que a gente trabalhava com plantas. E a medicina deles toda é baseada em plantas.
Um tempo depois, estou lá no Jardim Botânico do Rio, vem um guarda da portaria e diz: Gustavo, tem dois índios com cocares que vieram aqui te procurar, o que eu faço? Vieram dois líderes Huni Kuin ao Jardim Botânico, falar comigo. Contaram a história da etnia deles, e que estavam resgatando a cultura do povo depois de tudo o que tinham passado, e a medicina da floresta. Os pajés estavam velhos, morrendo, os jovens só queriam saber de internet ou ir para cidade em vez de aprender, e então eles queriam fazer um livro com as plantas de cura do povo para resgatar a cultura. Quando me falaram isso, eu logo me comprometi a ajudar. A ideia era uma cartilha, com registro em fotos das plantas que eles usavam e para que usavam. Para que ficasse gravada a memória que estava se perdendo com os pajés.
Foi uma complexidade enorme. Eles não têm língua escrita, só falada. Tive que contratar gente para gravar, com tradutor da língua deles. De cartilha virou livro, contratei uma editora, que também se encantou com a história toda. Virou um livro com papel à prova d’água, que não se desfaz, enfim. Huni kuin significa algo como homem de palavra. E isso ficou na minha cabeça, porque quando me sentei com eles eu disse que ia apoiar. Então tinha que honrar minhas palavras. O livro saiu, foi lindo, fui até lá e entreguei os mil exemplares.
Eles usam a medicina de modo diferente, muito mais espiritualizada. Foi um enorme aprendizado. Eu tive a oportunidade de conviver com eles, fui algumas vezes à aldeia, um mundo que tem uma beleza gigantesca, mas também uma dureza para nós que vivemos na cidade, no mundo urbano.
E no final das contas a minha conclusão como cientista é que boa parte do que eles têm de memória de plantas usadas na medicina não são mais as plantas da floresta. Isso mostra que eles, pelo seu passado histórico, pelo que os brancos fizeram, perderam conhecimento das plantas da floresta e passaram a usar na medicina espécies domesticadas, das capoeiras, dos quintais e lavouras. Olhando botanicamente para as mais de cem plantas que são imprescindíveis na medicina deles, no sistema de cura, poucas são originais da floresta primária.
Você tem uma coleção de cadernos de campo que deve superar uma centena, e o trabalho de campo, coleta, classificação, é bastante artesanal. Por outro lado, a tecnologia traz uma série de possibilidades de acesso e cruzamento desses dados. Como esses dois mundos se encontram no processo de inventariamento e catalogação de espécies?
Eu tenho mais de 100 caderninhos, com todos os lugares que eu fui, todas as plantas que coletei, tudo numerado e registrado. Eu vivo nos dois mundos. Desde 1973 até agora as minhas cadernetas são assim. Escrevo a mão, todas elas. Eu coleto a planta e faço a identificação no campo, porque se coleto 500 plantas e deixo esse processo para mais tarde, eu esqueço. Organizo as plantas, o processo de prensagem e secagem, tudo no fim do trabalho de campo. E isso vai para os herbários. Esses herbários passaram a ser digitalizados, disponíveis e acessíveis à sociedade brasileira. Então digamos, uma pessoa que é de Formosa, em Goiás e quer saber sobre uma espécie da sua região que eu coletei. Ela entra na plataforma, coloca meu nome, a cidade e vai acessar essa informação. A amostra, a fotografia da planta e tudo o mais.
Eu tenho dois trabalhos. Eu faço isso no campo e depois passo tudo para uma planilha, que vai para esse mundo tecnológico e fica disponível. Então se você quiser saber, na história do Gustavo, quantas plantas ele coletou na Mata Atlântica, pode fazer a busca usando o filtro adequado.
Essa é uma coisa maravilhosa, não precisar sair de Formosa e vir ao Rio de Janeiro, ficar dentro daqueles salões a 16 graus centígrados, para ter acesso. Temos amostras físicas lá que são de 1790. E agora digitalmente, você pode ver na sua casa.
É uma ferramenta muito boa, mas nada além disso. E ela me ajuda a fazer algumas análises. A distinção que eu faço entre conhecimento e sabedoria se encaixa aqui: conhecimento é o que você aprendeu, e sabedoria é o que você fez com esse conhecimento.
[caption id="attachment_1090645080" align="alignnone" width="640"]
Acervo pessoal de Gustavo Martinelli